entrevista: clariza rosa

por Cantão

Conectar pessoas à oportunidades. Esse é um dos objetivos de Clariza Rosa, nova colaboradora do Cantão, que faz um trabalho incrível de representatividade e de potencialização da periferia. Depois de anos vivendo a intensa dualidade da Zona Norte versus a Zona Sul, Clariza virou sócia da “Jacaré é Moda”, iniciativa de empreendedorismo social que está ajudando a reescrever os padrões das passarelas e abrindo caminho pra um novo olhar sobre a moda brasileira.

A Jacaré é Moda atua há mais de 10 anos levando desfiles anuais com meninas da comunidade em uma ação conjunta com representantes comerciais da região, como salões de beleza, lojas e costureiras. Tudo começou com o porteiro Júlio César, que aprendeu sobre moda lendo revistas que achava no lixo. Familiarizado com estilistas famosos, em pouco tempo se tornou um verdadeiro caça-talentos na comunidade.

Conversamos com ela pra conhecer mais sobre todos os desafios que a produtora enfrenta para ganhar mais força e reconhecimento no mercado da moda. Confere só:

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Conta um pouquinho sobre a sua história.

Ter crescido em uma favela fez toda diferença na minha vida. Nem sei se meus pais fazem ideia do quanto isso ajudou na construção da minha identidade. As pessoas tendem a fazer um pré-julgamento das outras e de certa forma, quebro um pouco isso, por falar sem crise nenhuma de onde eu vim, quem eu sou e porque estou aqui. Meus pais sempre me deram todo suporte que uma criança precisaria ter para formar seu caráter, o resto são detalhes da vida que a desigualdade social faz questão de manter, né?

Sempre estudei em escola pública e esse é outro ponto que reconheço com maior orgulho: a escola pública ensina realidades e visões de mundo que tenho um pouco de dúvida se instituições privadas são capazes de dar. No ensino médio fiz técnico de publicidade até entrar na faculdade, parece que eu “sempre soube” que faria comunicação.

E a faculdade era na Zona Sul, certo? 

Minha cabeça começou a mudar quando passei a viver mais intensamente essa relação Zona Norte x Zona Sul da cidade. Só quem pega metrô, um ônibus e outro ônibus, vai e volta pra casa em pé todo dia do trabalho sabe o que é isso. Você aprende na marra a fazer algumas leituras. O fato da PUC ser na Gávea fez toda diferença nessa “nova fase” da vida. Passei a entender mais claramente o porque de algumas coisas como: privilégios, falta de circulação de renda, bolsa de estudos e etc.

Eu estava construindo um pensamento crítico que futuramente me levaria a olhar para periferia como potência criativa. Ter de conviver com os dois extremos tão diferentes e tão parecidos estava despertando em mim o desejo de entregar para o lugar de onde eu vim tudo que aprendi do lado de cá. E tem coisas que você só aprende do lado de cá…

Você colabora para o Jacaré é Moda, projeto de empreendedorismo social e produtora de moda na favela do Jacaré, aqui na Zona Norte do Rio. Conta mais sobre o que faz por lá.

Ah, a Jacaré é Moda é demais. Eu sou sócia com mais três amigos e faço parte da equipe que toca a produtora, somos cinco pessoas ralando muito para fazer tudo acontecer. A Jacaré é Moda surgiu basicamente da ideia de mostrar pra cidade todo o potencial que a periferia tem a oferecer. A gente queria mostrar que acreditamos sim na mudança, que mesmo sem ter muitas opções tem gente que resiste, que mesmo que o mercado da moda ainda resista a este público ele persiste, se redesenha, são porta vozes das suas realidades e ditam comportamentos.

Nosso objetivo é usar a moda como canal de transformação e fazemos isso através do agenciamento e da formação dessa galera que vive nas periferias.

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Quais são os critérios de seleção das meninas? Elas também são envolvidas na produção e realização de concursos, como “A Mais Bela Entre Elas”? 

A gente seleciona os/as modelos de acordo com a mensagem que queremos passar e com aquilo que tem pipocado na moda. Mas quando falo disso, não me refiro a Paris e etc, mas sim o que temos visto rolar de interessante no Brasil mesmo, na moda que está acontecendo aqui, perto da gente também. Fomos ensinados a amar o que é de fora e às vezes distante, mas temos tantas belezas e inspirações aqui. O Brasil também é lindo, pode confiar!

Os modelos não participam da realização dos concursos, não. Na verdade, esse concurso servia para as pessoas virem até nós com o desejo de se tornarem modelos. Hoje, a gente entendeu que esse movimento deveria e poderia ser de mão dupla, então nós vamos em diferentes comunidades encontrar esses jovens. No começo desse ano foi assim, fizemos uma super seleção que rolou em quatro favelas diferentes aqui do Rio, mais de 70 modelos foram analisados e no fim escolhemos 6 para entrarem no time. Tem muita gente boa por aí precisando de espaço. Nós queremos possibilitar isso.

Moda da resistência para quebrar estereótipos e alimentar jovens de conhecimento e personalidade. Este é o lema e, obviamente, a motivação de vocês. Tem sido difícil quebrar os paradigmas e reescrever esses padrões? 

Olha, pode parecer estranho mas é muito mais difícil quebrar os paradigmas de quem não vive na periferia. O que a gente encontra nas comunidades são mulheres que não acreditam muito no seu potencial porque foram estimuladas a isso, a nossa cultura estimula esse pensamento. Mas, ao mesmo tempo, encontramos mulheres fortes, empoderadas, que estão tocando seus projetos, que tem um estilo próprio e que sabem muito bem quem são.

Quando falamos sobre identidade, queremos incentivar que ninguém tenha vergonha de dizer de onde veio e que mora na favela. Não porque isso hoje é cool, mas sim porque aquele lugar tem valor, porque eles tem valor. Já nos perguntaram uma vez se nosso casting era apenas de pessoas negras. E não, não é. Mas nós trabalhamos em um território de periferia onde a maioria das pessoas são negras e isso não é a toa. Então, quando abordamos o fato de se aceitarem como são, passamos por questões raciais que precisam ser levadas a sério, pois elas causam grandes impactos na vida de muitas meninas.

Falta apoio?

Estava ansiosa pra responder essa pergunta (risos). Falta! Mas falta aquele apoio que impacta o bolso. A economia de rede e colaborativa é muito bonita e cresce a cada dia mais mas se você não tiver dinheiro nenhum, ela perde força, não tem muito jeito. A nossa bandeira do empoderamento e impacto é também gerar renda. Nós encontramos com muita gente que acha a empresa incrível mas não potencializa o trabalho como poderia porque não abre espaço para modelos da periferia. A moeda do amor é boa, mas o dinheiro também é, e no fim das contas ele possibilita que novas moedas “do amor” apareçam.

A gente já conseguiu algumas entradas bacanas no mercado por conhecer gente, isso é ótimo e sou muito grata, mas teríamos oportunidades muito maiores se mais entusiastas acreditassem no trabalho a ponto de inseri-lo dentro das suas marcas. Visibilidade é incrível, mas ter acesso á lugares novos é ainda mais!

Você acha que o novo cenário social da moda brasileira está influenciando os processos de consumo? 

Sim e não. Sim porque existe uma bolha populacional que vive esse novo cenário da moda. Que fala sobre consumo consciente, que discute cadeia produtiva, que fala sobre recriar, co-criar e resignificar. Essas pessoas são as que desenham esses processos e exercem influência sobre isso. Mas existe uma outra parcela que ainda se apega às marcas e que não está pensando em consumo consciente. Os processos de consumo estão mudando sim, mas a reposta a essa mudança nem sempre é do jeito que o nosso feed do Facebook mostra.

Acredito que o processo de consumo pode mudar radicalmente quando a costureira das marcas x,y,z for a pessoa que vai opinar na modelagem da peça e ser ouvida (se aquilo for referente a realidade dela) e não apenas mão de obra, no dia que essas mesmas costureiras conseguirem sair (se quiserem e tiverem acesso a isso) das favelas onde vivem e dividirem o asfalto com a gente porque ganham bem o suficiente pra isso, quando a assistente de estilo da periferia virar coordenadora e montar o time que ela quiser para fazer campanha, quando os preços tanto de venda quanto de lucro forem justos ao produto, a história das pessoas e por aí vai. Quando a moda exercer seu peso e influência com responsabilidade no processo todo, aí sim veremos um cenário social da moda realmente transformado.

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O projeto já atravessou os limites do subúrbio carioca para chamar a atenção de grandes e renomadas agências mundo afora. As marcas e agências brasileiras também têm valorizado o trabalho de vocês?  

Hmm, não estamos grandes assim ainda. Hoje duas mulheres do Jacarezinho moram e trabalham na Europa como modelos por causa da agência mas são essas duas por enquanto. Nós já quase emplacamos uma modelo no SPFW mas acabou não rolando porque “não era o que procuravam”. Tivemos contato com importantes agências e figuras da moda em São Paulo, o que foi maravilhoso, mas foi aquilo que disse antes, não gerou um impacto profundo e nem trabalho. Esses esteriótipos ainda precisam ser quebrados.

É importante ressaltar que quando falamos de marcas brasileiras temos dois lados diferentes: as gigantes do mercado e os novos criadores. Algumas grandes e importantes marcas até já sabem que existimos mas ainda não tivemos entrada.

E os novos criadores nem sempre tem grana pra pagar. A gente acredita demais nessa galera! No potencial e no profissionalismo de muitas marcas que estão surgindo devagar. Nosso objetivo é alcançar esse mercado também, que não tem muito investimento mas quer entregar algo com qualidade. Mas muitas vezes concorremos com os amigos e primos que não pagam imposto e nem repassam esse valor pra ninguém. Estamos bolando um modelo de negócio para facilitar a participação desses novos criadores e vamos trabalhar pra dar certo!

O que precisa mudar?

A cabeça e o bolso. A cabeça porque ela é a porta de entrada que possibilita o acesso a coisas que só com o bolso empoderado dá pra fazer. E o bolso porque é preciso fazer o dinheiro circular.

Aqueles que exercem algum poder de influência precisam entender e gerar oportunidade pra que novas narrativas sejam contadas, pra que novas pessoas sejam descobertas, senão a gente vai sempre inovar de um lado só, pra um lado só. Se a inovação não é capaz de gerar acesso e facilitar novos cenários será que ela é inovação de verdade?

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