Nesse momento tão crítico para o Brasil, talvez seja hora de rever o documentário AmarElo — É tudo para ontem (2020), de Emicida, na Netflix, acompanhamos os bastidores de composição do disco homônimo, bem como algumas cenas do show que aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo. Mas não apenas: no longa-metragem, Emicida se firma como um pensador autoral, com autonomia intelectual e sensível rara de encontrar, enquanto resgata parte importante da história do Brasil, e também da história da arte do nosso país, desde a abolição da escravidão até os dias atuais. Assim, temos acesso a gravações raras e a um conjunto de informações que pode ser novidade para muita gente, especialmente pela forma como estão concatenadas. No meio disso, Emicida apresenta duas teses, ambas interessantíssimas: a de que, no Brasil, o hip hop e o rap estão ligados ao samba (“podemos ser mais”, diz ele) e a de que o samba é um movimento cultural, uma forma de ver o mundo, que não se restringe à música.
A trajetória bem sucedida de Emicida como artista multifacetado, pensador e empresário é uma exceção num país em que a maior parte das pessoas negras continua vivendo às margens. “Vencer é muito mais do que ter dinheiro, logo esses jovens [do rap e do hip hop] querem mais do que ter sucesso, querem reescrever a história desse país. Ah, importante: minha mãe me chama de Leandro, mas todo mundo me conhece como Emicida. Eu sou um desses jovens”, diz no início do documentário. Diante de séculos de exploração e exclusão, a raiva que as pessoas oprimidas sentem é mais do que compreensível, é absolutamente legítima. E essa raiva, se bem canalizada, pode se tornar uma ferramenta importante de luta e de transformação. Já o ódio, a longo prazo, talvez não seja um bom amigo. Em uma entrevista anterior ao documentário, Emicida argumenta que o ódio, como estratégia, falhou. Fala em defesa da calma, mas não de uma calma que adestra, que abate e amansa. Uma calma que é “o extremo oposto, a calma como um elemento que pode fazer a pessoa refletir melhor e pensar de maneira estratégica”. Parece um mantra perfeito para esse período pré-eleições.
O registro da fala de Emicida é sempre coloquial, um registro da “cosmopolita, multicultural periferia de São Paulo”, onde ele nasceu: “Na trama tudo os drama turvo / Eu sou um dramaturgo / Conclama a se afastar da lama / Enquanto inflama o mundo”, dizem os versos de “AmarElo”, a canção. Ao contrário da maior parte das pessoas, que quando ascende socialmente busca apagar as marcas das origens para dispersar e sobreviver aos preconceitos, Emicida faz questão de se expressar, pessoalmente e artisticamente, a partir desse lugar, e assim leva a periferia para o centro, ocupando lugares concretos e simbólicos, como o Theatro Municipal de São Paulo. Em uma conversa recente com o professor Fernando Haddad, candidato ao governo de São Paulo, Emicida foi convidado por ele, se eleito, a fazer o mesmo com a Sala São Paulo, local belíssimo no centro da capital paulista que abriga a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), borrando a linha que muitos tentam traçar com a solidez de um muro entre o que seria uma cultura de “elite” e o que seria uma cultura popular.
Emicida celebra a negritude com vivacidade e alegria, destacando o trabalho de muita gente importante, como Lélia Gonzales, pensadora elogiada por Angela Davis, enquanto também contradiz quem torce o nariz para tudo que não considera “alta cultura”. Fala do processo de gentrificação, que empurrou grande parte da população para as margens da cidade, fazendo o movimento oposto: ao instalar um telão em frente ao teatro, amplificando o show para todas as pessoas da região, ele chega, literalmente, às ruas em volta e as aproxima do interior suntuoso, interligando os espaços. Emicida faz questão de levar a periferia consigo e a transforma numa espécie de registro poético, de centro interior. No lugar de modular o discurso para se encaixar no posto de intelectual conforme as expectativas alheias, constrói para si uma posição sólida entre os maiores artistas e pensadores contemporâneos do Brasil a partir de um discurso particular. É o mundo que precisa abrir espaço para celebrar e aprender com ele, e com tantos outros nomes que o antecedem e o acompanham. Se o preconceito divide, segrega, estreita, limita e empobrece, o encontro e o elo somam, multiplicam, integram, ampliam, potencializam e enriquecem. Perde quem escolhe o primeiro mesmo diante da abundância do segundo. Vamos pensar nisso nas eleições do próximo domingo?
“Do fundo do meu coração / Do mais profundo canto em meu interior, ô / Pro mundo em decomposição / Escrevo como quem manda cartas de amor”, diz Emicida em uma de suas canções. Por aqui, a carta foi recebida. Espero que por aí possa ser também.