O ano de 2022 marca o centenário da Semana de Arte Moderna, evento que reuniu, no Teatro Municipal de São Paulo, dezenas de artistas e intelectuais ligados ao modernismo, movimento artístico que procurava romper com os padrões de arte vigentes, tomando a cultura e o território nacionais como inspiração inovadora. Entre os nomes que protagonizaram a primeira fase do modernismo brasileiro estão o poeta Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral, que contribuíram à consolidação da estética modernista não apenas com suas obras, mas também com as roupas que vestiam. Elas são tema do livro “O guarda-roupa modernista: o casal Tarsila e Oswald e a moda” (Companhia das Letras), resultado da pesquisa de doutorado de Carolina Casarin, figurinista e professora de história do vestuário e da moda. A partir de fotografias, tecidos, desenhos, textos, recortes de jornais e depoimentos, a autora investiga o aspecto modernista do guarda-roupa do casal, compondo um retrato riquíssimo dos tempos que Tarsila e Oswald passaram juntos e mesmo do grupo modernista como um todo.
Um dos muitos pontos interessantes da proposta de Casarin é a exploração da dimensão performática dos trajes, especialmente na primeira metade do século XX. Naquele momento, o novo destaque à figura do artista transforma em composição artística o próprio ato de vestir, fundamental à autorrepresentação e à recepção das obras. Assim é que a ideia de “brasilidade modernista” extrapola os limites das criações do casal e inscreve-se também em seus trajes, desdobrados em arte. A aparência de Tarsila e Oswald — ou Tarsiwald, expressão antropofágica cunhada por Mário de Andrade, simbólica em vários níveis — ajuda a tecer a teia discursiva da história do modernismo. Para desemaranhar essa complexidade, a autora não perde de vista o cenário sócio-histórico do período e resgata o necessário dos processos políticos que imprimiam seus efeitos na produção artística e intelectual do momento. Casarin localiza muito bem os artistas na elite agrária a que pertenciam, que tinha a Europa como modelo de formação e celebrava o prestígio do consumo, apostando na moda como capital simbólico de distinção. A predileção de Oswald pelos acessórios extravagantes da marca Sulka e a relação duradoura de Tarsila com a casa de alta-costura francesa Paul Poiret, exemplos bem desenvolvidos no trabalho de Casarin, reforçam o aspecto cosmopolita, luxuoso e moderno do casal, que “projetou em suas trajetórias uma imagem de Brasil que convinha a certa expectativa de exotismo por parte dos europeus, em que convivem palmeiras e bondes elétricos, numa estilização plástica que deixa de lado nossa violência e nossas contradições”.
Felizmente a autora não se furta de encarar esses paradoxos intrínsecos ao movimento modernista (a tradição e a modernidade, o rural e o urbano, a identidade nacional e as influências estrangeiras, para citar alguns deles), profundamente encarnados no estilo do casal que protagoniza a pesquisa. Ao contrário: ela faz da moda em si, aqui representada pelas escolhas vestuárias de Oswald e Tarsila, a lente de análise do mecanismo de legitimação cultural da elite que pautou o modernismo apesar de seus ideais revolucionários de mudança. Casarin levanta, justamente, a desconsideração dos modernistas às misérias e desigualdades da sociedade brasileira que se dispuseram a retratar e a “modernidade fora de moda” que a grife Tarsiwald exibia, sem esquecer que eles foram um fruto do seu tempo e do seu meio — como escreveu Tarsila na crônica que epigrafa o livro — e, portanto, dificilmente fugiriam à representação das tensões do colonialismo patriarcal e escravocrata ainda insuperado no Brasil. De fato, mesmo a ousadia tão louvada na aparência do casal foi bancada pelo seu pertencimento à alta burguesia de origem rural. A emancipação artística de ambos, viabilizada pelo capital de que suas famílias dispunham. Tarsila e Oswald estiveram tão conectados ao modernismo que as tensões do movimento se refletiram no modo com que eles se apresentavam ao mundo.
Abrir o guarda-roupa de Oswald e Tarsila é o primeiro passo de Carolina Casarin em direção ao percurso de sucesso da carreira artística dessas duas figuras centrais do modernismo. Nada escapa aos olhos atentos e à narrativa equilibrada da autora, que harmoniza diferentes debates e promove uma viagem prazerosa pelo fluxo da história modernista, sem se deixar levar pelo culto à personalidade dos artistas. O exame de cada vestimenta em seu respectivo contexto, as imagens que ilustram a edição e as preciosas colocações de Casarin sobre as vestes e as obras dos artistas apresentam o estudo das transformações históricas da moda como uma possibilidade de elucidar o passado para construir uma visão crítica sobre o presente, enriquecendo nosso olhar sobre a sociedade brasileira em determinada conjuntura. Ao demonstrar que “a aparência de uma artista colabora na construção dos sentidos de sua obra”, ela prova que vestir-se, afinal, é uma arte a ser levada em conta.