Xênia França trocou o sonho de ser modelo pela música. Entrelaçando diferentes gêneros e influências – jazz, iorubá, R&B – a cantora usa esse instrumento como um manifesto da força da cultura negra dentro de uma sociedade racista e desigual. Aqui é papo sério sobre ancestralidade, respeito, amor, cura e fé. É sobre ser mulher. Mulher preta brasileira!
“Música preta, sou teu instrumento, vim pra te servir”, canta a baiana Xênia França, em “Preta Yayá”, uma das faixas de Xênia, seu primeiro disco solo. A representatividade, apropriação cultural e invisibilidade são alguns dos temas para as reflexões da cantora no álbum – e fora dele. “Quis mostrar que sinto um orgulho imenso de ser uma mulher preta nordestina, de ser do lugar que eu nasci. Quis homenagear as mulheres da minha linhagem e que me colocaram aqui. Dizer que esse corpo também ama e quer ser amado. Quis me auto afirmar e dizer pra aquela menininha preta de Camaçari, que ter ideias mirabolantes foi maravilhoso e ela tinha razão. A gente pode ser o que a gente quiser!”
Como foi sua infância e adolescência na Bahia? E a aproximação com a música?
Nunca pensei em ser cantora, gostava muito de mexer nos LPs da minha mãe em casa e música sempre me pareceu algo especial. Na adolescência, me aproximei mais da música quando entrei na Banda Municipal de Camaçari, uma fanfarra. Eu não tocava nenhum instrumento; era “mór”, uma espécie de baliza, comandante da fanfarra. Mas eu estava sempre bisbilhotando os ensaios dos naipes de sopro, e aquilo me encantava demais. Depois iniciei uma faculdade de Comunicação, e me mudei pra São Paulo pra seguir carreira de modelo. Acabei entrando de cabeça quando conheci a galera do Aláfia. Lançamos o nosso primeiro disco em 2013 e já estamos no terceiro. Até chegar aqui, muita água já rolou, e a música passou a ser minha guia.
Como é ser uma mulher negra e nordestina vivendo numa megalópole como São Paulo?
Eu cheguei aqui sozinha, ainda adolescente, tudo era diferente pra mim, meu sotaque, meu jeito era diferente das pessoas…acho que o que me manteve firme em não desistir foi justamente começar a me conhecer. Uma cidade desse tamanho pode te engolir se você não souber quem você é.
Você traz uma tônica forte, porém sensível, sobre racismo e identidade negra. Qual a faixa do seu disco que melhor representa ou sintetiza essas questões?
Cada faixa aponta um olhar para subjetividades negras diferentes. Mas acho que “Pra Que Me Chamas”, traz uma problematização pontuda a respeito do extrativismo e da apropriação cultural, consequências do racismo ainda presente no Brasil. A cultura negra é popular mas as pessoas negras, não. O refrão “Por que tu me chama se não me conhece?” amarra o conceito de tudo que é dito ao longo do disco. O nome da música também é a tradução de “Pa que tu me llamas si tu no me conoces”, saudação [oriki] do poderoso Orixá Elegguá, entidade cultuada na santeria cubana, que se associa a Exu no candomblé brasileiro. Essa frase questiona a banalização e a apropriação dos símbolos da cultura negra sem conhecimento, transformando-os em meros produtos comerciais.
Fale um pouco sobre as suas influências.
A herança cultural deixada e continuada pelos africanos e seus ascendentes é uma das maiores influências. Os blocos afros da Bahia (Ilê Ayê, Olodum, Muzenza), que são como porta-estandartes da nossa cultura local, também. Me marcou muito crescer ouvindo ritmos e letras que denunciavam o racismo e incentivavam a autoafirmação e o orgulho de ser preto. O grande amor da minha vida desde pequena sempre foi o Michael Jackson, inclusive tenho um altar em homenagem a ele na minha casa (risos). A música produzida pelos negros americanos em geral sempre me encantou e, com certeza, me influenciou.
O que não sai da sua playlist?
Michael Jackson (claro!), Elza Soares, Anderson Paak, Stevie Wonder, Djavan, Sampha, Thunder Cat, John Coltrane, Luedji Luna, SZA, Larissa Luz, rumba cubana, Xênia… (risos).
Seu figurino remete a um uniforme de fanfarra, bem poderoso. Fale um pouco sobre a escolha para a capa do disco.
O Michael me inspira muito e eu resolvi misturar essa referência com a minha própria história na fanfarra lá em Camaçari. Eu conduzia mais de 150 pessoas nos concursos que a gente participava, evoluindo em marcha com um tipo de cetro e uma roupa muito parecida com a da capa. Pensamos em alinhar essa estética com todo o conceito do disco, já que tinha tudo a ver a ideia de representar uma mulher dona do seu próprio destino, que parece estar vestida pra guerra com aquela farda, meio que pra se proteger de tudo e de todos, mas embaixo tem um vestido de renda que aponta pras suas fragilidades e questionamentos num ambiente totalmente em ruínas.
Viver Bem pra você é…
Estar bem comigo mesma. Isso pode parecer simples e clichê, mas é assim que levo a minha vida. Tenho usado quase todos os recursos do meu trabalho em terapias entre outras coisas que ajudam nesse caminho de cura para dentro de mim mesma. Isso me ajuda a compreender como sou de verdade e a me aceitar. Uma mulher negra carrega muitos traumas pessoais e ancestrais e chega um momento na vida que, se não olharmos pra isso, tudo vai ladeira abaixo. Já que a vida é um mistério, o meu propósito nela é estar no presente o máximo que eu conseguir. Viver Bem é cuidar do meu corpo e mente, pensar no tipo de alimento que consumo, me proporcionar muito prazer, me responsabilizar pelas minhas atitudes, ter paciência comigo, me dar carinho e amor… Meu propósito é aprender como estar nessa dimensão caótica e, ainda assim, fazer essa experiência ser plena e bonita, pra que eu possa sair dela melhor do eu que entrei.
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Quer conversar com a Xênia? Ela é a nossa convidada especial do primeiro talk do Coletivo Viver Bem deste ano. Chega mais pra confirmar sua participação nesse bate-papo sobre música como forma de arte e de luta pela afirmação da mulher.