Uma conversa com Aline Valek

por Cantão

A escritora e ilustradora Aline Valek nasceu em Minas Gerais, cresceu nos arredores de Brasília e vive em São Paulo há alguns anos. Recentemente, deixou a publicidade para se dedicar exclusivamente a seus livros, ilustrações e projetos autorais. Em 2016, publicou o livro “As Águas-Vivas Não Sabem de Si” pela Fantástica, selo de fantasia da Editora Rocco, um suspense com elementos de ficção científica (saiba mais aqui).

Aline também ilustrou “As Lendas de Dandara” (abaixo), publicação independente da escritora e cordelista Jarid Arraes, e acaba de transformar sua newsletter “Bobagens Imperdíveis” (que mantém desde 2013) em zine, com edições mensais impressas enviadas pelo correio aos assinantes.

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Conversamos com a autora sobre literatura, arte e política. Leia a entrevista abaixo:

Em uma entrevista de 2014, você disse: “Só sei escrever, então faço da escrita a minha militância”. Hoje você parece ter se aproximado ainda mais do feminismo. Como tem sido esse percurso?

Na época dessa entrevista, eu via a escrita como ferramenta para propagar ideias feministas, mas mudei quanto a isso: de uns tempos pra cá parei de escrever sobre feminismo e militância. Ficou inviável pra mim. Percebi que fazia mais sentido direcionar minha energia para a literatura, para escrever minhas histórias, para ilustrar e ajudar a contar a história de grandes mulheres, como fiz para o livro escrito pela Jarid Arraes, “As Lendas de Dandara”, ou ainda para falar de outras escritoras que me inspiram, que merecem ser conhecidas.

Talvez tenha me aproximado do feminismo no sentido de perceber que minhas histórias (e a das outras mulheres) importam e merecem ser contadas.

Na sua opinião, como a literatura pode dialogar com os movimentos políticos sem se tornar engessada por eles? 

Acredito que a boa ficção é um exercício da verdade: é tentar buscar, mesmo em histórias completamente inventadas sobre gente que não existe, a verdade sobre o nosso mundo, sobre as pessoas à nossa volta e sobre nós mesmos. E entrar com essa profundidade no ser humano não é um trabalho limpinho. Tem muita coisa desagradável, contraditória, feia, suja, mas que pode ser usada para contar histórias que emocionem ou transformem.

A arte deve mirar nessa verdade, não num ideal do que é “correto”. Quem tenta dizer o que é “correto” ou inventar um ideal do que deveríamos ser é a propaganda. Arte é outra coisa. Arte é espaço para provocar, perturbar, chacoalhar a ordem vigente, demolir certezas e deixar umas dúvidas no lugar, jogar verdades sobre nós que não teríamos coragem de enfrentar de outra forma.

Quem cria ficção tem uma responsabilidade muito grande. Porque é preciso ter alguma consciência sobre o mundo que nos cerca para conseguir representá-lo com profundidade, de forma crítica. Se por um lado os movimentos políticos podem “engessar” a ficção, quem está alheio a questões sociais acaba ficando na superfície e reproduzindo ideias caducas. Acaba se distanciando da verdade também.

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Como foi criar uma protagonista que trabalha no meio do oceano (Corina em “As Águas Vivas Não Sabem de Si”), sendo você nascida em Brasília e morando em uma cidade como São Paulo, vivenciando uma rotina bastante urbana, completamente diferente? Sei que a oceanógrafa Sylvia Earle foi uma inspiração. Conte um pouco mais das figuras que te inspiraram no processo.

Acho que mais difícil que criar uma personagem de um contexto tão diferente do meu foi lidar com uma personagem fechada feito uma ostra. Quando comecei a escrevê-la, percebi que ela só se revelava dentro d’água. A narrativa teria que ser submersa e foi muito difícil escrever sobre o oceano, um mundo tão distante do meu, quase como outro planeta, mas era como essa história exigia ser contada. Sou a maior medrosa, ainda não tenho coragem de me aventurar num mergulho de verdade, mas não tenho medo de vestir outras peles, de sair um pouco da minha perspectiva quando estou lendo ou escrevendo. Literatura é esse espaço onde é permitido sair de si por um momento, então por que não? Se algo me parece fora de alcance, longe do meu universo, aí é que me dá vontade de escrever. Para tentar entender.

Sylvia Earle me ajudou muito nesse processo. Conheci ela através de um documentário chamado Mission Blue e depois li bastante sobre o Projeto Tektite II, uma expedição em que ela e outras cientistas ficaram submersas numa estação submersa a 15 metros de profundidade, por semanas. Isso nos anos 70. Sylvia foi pioneira em vários aspectos. Por exemplo, foi a primeira a usar um traje de mergulho para caminhar a mais de 300 metros de profundidade no oceano, em 1979. Um tipo de tataravô do traje que a Corina usa no livro.

Os estudos e pesquisas dos quais Sylvia participou contribuíram para o conhecimento que temos hoje do oceano, que é uma fração muito pequena em relação ao que ainda pode ser descoberto. Outra cientista que ajudou a entender o oceano foi Marie Tharp, geóloga. Foi a primeira a mapear o relevo oceânico, nos anos 40. Essas figuras também me inspiraram a criar Martin, o cientista da história, e essa ânsia dele em descobrir o que mais existe lá embaixo.

Como tem sido seu dia a dia desde que deixou a publicidade para se dedicar à escrita? 

Puxado. Sem nenhuma certeza ou segurança. Sem orientação de alguém com mais experiência que me diga o que fazer ou como lidar com um desafio novo. Pensando bem, até que se parece um pouco com o que acontecia em agências.

É difícil, mas eu gosto de trabalhar, de estar imersa na produção, de me aventurar em um projeto que vai exigir todo meu tempo. Acho que gosto do difícil, de fazer tudo sozinha, por exemplo. Costumam ter essa ideia que ser artista ou se dedicar à escrita ou trabalhar em casa com projetos próprios é ter mais liberdade. Pra mim é bem o contrário. Porque a escrita exige um compromisso absurdo, que me toma o tempo, que me impede às vezes de ter uma vida social ou até (principalmente) de ganhar dinheiro.

Faço as coisas até onde fazem sentido pra mim, porque se aprendi algo trabalhando com publicidade foi a ter desapego. Você larga de trabalhar numa área e é vida que segue. Pode acontecer de novo.

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E como foi transformar a newsletter “Bobagens Imperdíveis” em um zine impresso?

Primeiro pensei: como posso fazer “Bobagens Imperdíveis” de uma maneira ainda mais difícil e trabalhosa e que me faça rachar a cabeça na parede de formas que meu crânio nunca imaginou rachar? Uma zine. Impressa. Mensal. Era disso que eu precisava, um desafio do tipo chefão de masmorra no vídeo-game.

Tá, a verdade é que eu não estava satisfeita com a newsletter, estava há um tempo tentando criar um novo formato. Foi quando lembrei da época em que eu fazia zines, há uns 12 anos. Resolvi aproveitar essa experiência básica, bem rudimentar, que adquiri em fazer pequenas publicações independentes e artesanais para testar o novo formato de Bobagens.

Tem sido bacana chegar na casa das pessoas de uma maneira diferente. Acho que os leitores ficam felizes em receber uma cartinha que não seja boleto ou cobrança. Mas muita gente já veio me perguntar “por que impresso?” em tempos onde a internet concentra boa parte do conteúdo. Olha, eu não sei. Às vezes também fico pensando que o que estou fazendo é algo totalmente fora de hora, tenho essa sensação de estar meio fora de sincronia com o que está acontecendo no mundo. Então não sei porque acredito tanto em fazer algo no formato impresso enquanto tanta gente se aventura no digital, em conteúdo de vídeo, em formatos mais fáceis de compartilhar. Mas eu faço as coisas justamente para descobrir. Para entender por quê.

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