As melhores leituras de 2016

por Cantão

15 leitores, 15 livros. Entre escritores, professores e profissionais do mercado editorial, o denominador comum aqui é que todos são leitores entusiasmados compartilhando dicas literárias. Cada um dos entrevistados foi desafiado a escolher apenas um livro como favorito.

As respostas renderam uma lista com inspiração de leituras para todos os gostos:

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Julia Codo, editora | “A Resistência”, Julián Fuks

Foi minha leitura favorita porque é um livro que fala sobre diversos tipos de resistência: política, familiar e literária. O narrador – um dos filhos de um casal de psicanalistas argentinos que chegam ao Brasil fugidos da ditadura militar nos anos 70 – conta a história de sua família através um elemento central: seu irmão adotado. De um modo muito íntimo, entramos em contato com essa história complicada, marcada por muitos silêncios e pela repressão. É também uma narrativa autorreferencial que está todo o tempo discutindo os seus limites e se perguntando sobre o que é verdade e o que é ficção. Por isso, muitas vezes temos que sair da posição passiva de meros leitores e desconfiar da memória do próprio narrador. Vale a pena porque é uma história muito bonita que é contada de um modo bastante particular.

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Gabriela Ventura, professora de literatura | “Uma História Natural da Curiosidade”, de Alberto Manguel

“Sou curioso quanto à curiosidade”, escreve Alberto Manguel, no início de uma investigação sobre nosso potencial questionador. Fundamental para as ciências e as artes, esse instinto foi, ao longo do tempo, condenado pela religião e pela cultura – é só pensar nos casos exemplares de Eva e Pandora – e por incontáveis regimes políticos. Hoje a curiosidade parece ter sido circunscrita à esfera do desenvolvimento infantil: queremos que as crianças sejam curiosas, há literatura sobre estímulo à curiosidade, mas quase não se fala em adultos curiosos: este atributo parece ser prerrogativa de gênios ou diletantes. Quando e como a curiosidade deixa de ser uma capacidade a ser exercitada e se torna um problema? A partir da estrutura d’A Divina Comédia, de Dante Alighieri, Manguel escreve dezessete ensaios que tentam responder perguntas como “O que é a curiosidade?”, “O que queremos saber?” e “Quem sou eu?”.

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Janine Bitencourt, publicitária e escritora | “História de Quem Foge e de Quem Fica”, de Elena Ferrante

Relutei em conhecer uma autora que escreve sob pseudônimo, cujos livros, além de terem em média 400 páginas, ainda compõem uma tetralogia. Mas fui fisgada por sua prosa tão dinâmica quanto poderosamente feminina e contraí a famosa #ferrantefever. Especialmente nesse terceiro livro, em que as personagens Lila e Lenu já estão adultas, às voltas com o mundo da maternidade, lidando com a necessidade de se emanciparem (sem contar as frustrações de quem pensa em viver da escrita). Me identifiquei tanto que o devorei em três dias. Deu vontade de aprender italiano só para começar o quarto volume, ainda inédito no Brasil.

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Liliane Prata, editora, jornalista e escritora | “Além do Ponto e Outros Contos”, de Caio F. de Abreu

Gostei tanto de “Além do ponto e outros contos”, de Caio Fernando Abreu, que decorei um trecho, hábito abandonado desde que voltei a trabalhar em redação, há quase dois anos. São quinze contos que tratam de temas diferentes com estilos variados, mas algo permanece em todos eles: a riqueza narrativa, simbólica, poética, emocional, enfim, a riqueza tocante e multifacetada ao tratar das vulnerabilidades e desejos. A escrita de Caio é toda atraente, mas vai surpreendendo com uma pérola de tirar o fôlego aqui, outra ali, e a gente entende por que é tão comum achar frases dele (algumas verdadeiras, algumas vai saber) pela internet afora. Enfim, recomendo demais o livro, o primeiro que li dele. Ah, e o trecho decorado: “E eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse. Mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era”.

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Sofia Sofer, escritora, editora e tradutora | “You Will Know Me”, de Megan Abbott

A adolescência tardia de uma ginasta de quinze anos, o desespero obsessivo de seus pais dedicados, as fofocas que percorrem um subúrbio americano, um belo casal de jovens e uma devastadora tragédia são os principais elementos do thriller neo-noir de Megan Abbott, uma de minhas autoras favoritas (ainda, infelizmente, pouco traduzida no Brasil). O ritmo do romance me hipnotizou como uma apresentação de ginástica artística: os movimentos tão encadeados que mal notamos a transição, os truques invisíveis, a trilha que embala a história, o final arrebatador, o suspiro de alívio quando tudo acaba – e, mais que tudo isso, os quase imperceptíveis deslizes, as hesitações, o que escapa de uma sequência perfeita e nos mostra, por um breve instante, a humanidade tão física, tão sensível, tão exposta que a performance esconde.

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Juliana Gomes, criadora do projeto Leia Mulheres | “Uma Vida Pequena”, de Hanya Yanagihara

A minha leitura preferida de 2016 foi “Uma Vida Pequena”, de Hanya Yanagihara. O romance aborda a história de quatro amigos que se conheceram na faculdade e a crueza dos sentimentos é assustadora, assustadora e transparente. Um livro sobre a fraqueza humana, um espelho cruel do ser humano.

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Rogério Bettoni, editor e tradutor | “Em Má Companhia”, de Vladimir Korolenko

Vladimir Korolenko é aquele tipo de escritor que a gente lê e lamenta não ter conhecido antes, depois agradece por ter sido publicado no momento certo, e numa edição caprichadíssima da editora Carambaia, com tradução de Klara Gourianova. Numa vila pequena no final do século XXI, um menino rico, filho de um juiz, ao visitar as ruínas de uma capela abandonada, conhece um casal de irmãos pobres e fica amigo dos dois. Quem narra em primeira pessoa é o próprio menino, e pelos olhos dele é que vemos a ironia típica dos russos, as contradições da sociedade (tão nossas), as questões humanistas (tão nossas). O comovente capítulo em que ele fala da relação com o pai e de como o vê é obra-prima à parte. O livro vem dentro de uma caixa com outro romance do autor, “O músico cego”.

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Stephanie Borges, jornalista e colaboradora do Leia Mulheres | “Meu Nome é Lucy Barton”, de Elizabeth Strout

É a história de uma mãe que ama a filha. De forma imperfeita. Porque todos nós amamos de forma imperfeita. Se você se pegar protegendo alguém enquanto escreve isto, lembre-se: você não está fazendo certo. “Meu nome é Lucy Barton” me surpreendeu. Usando a uma premissa simples, da mãe que acompanha a filha internada no hospital, autora constrói uma narrativa sobre família, memória, amor e a relação de tudo isso com a escrita. Lucy, uma mulher que gostaria de escrever um livro, confronta suas questões com seus pais, as circunstâncias em que foi criada, as escolhas de sua vida ao contar sua história. A narradora caminha numa linha muito fina, entre não proteger seus familiares, evitando a criar a sensação de que ela, por estar contando a história, é superior a eles. A busca pelo equilíbrio tênue entre narrar os acontecimentos sem expor as pessoas é um dos traços mais delicados desse romance curto e notável. Um livro que convida o leitor a olha sua própria história com generosidade e capacidade de perdoar. Os outros e a si mesmo.

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Petê Rissati, tradutor, escritor e professor | Tirza, de Arnon Grunberg

Fiz ótimas leituras neste ano, mas a que me marcou foi “Tirza, do holandês radicado em Nova York, Arnon Grunberg. O autor nos conduz pela vida de Jörgen Hofmeester, pai da garota Tirza, e de sua família perfeita na aparência, mas totalmente disfuncional. Impressionante como o autor tem uma coisa que sinto falta nos dias de hoje: ele conta uma história de verdade. Sombria e excelente, tão à beira do absurdo que acaba parecendo possível. Com uso minucioso da linguagem, ele nos leva pela mão, nos embala e, quando menos esperamos, arranca a rede de segurança e nos deixa cair nas profundezas da sordidez humana. No lançamento de “O Homem Sem Doença” aqui em São Paulo, perguntaram a Grunberg qual seria a doença do século 21, e ele respondeu: ‘Não procurem essa doença neste livro [“O Homem Sem Doença]. Essa doença está em “Tirza”‘. Tradução de Mariângela Guimarães.

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Flávia Stefani Resende, escritora e tradutora | “Grief is The Thing With Feathers”, de Max Porter

Belíssimo romance de estreia de Max Porter, esse livro conta a história de uma família atingida pela morte da mãe, que parte de repente, deixando o marido e dois filhos para trás. Poucos dias após a morte da mãe, o pai recebe a visita de um corvo, que cumpre vários papéis ao mesmo tempo: trapaceiro, babá, protetor, poeta, conselheiro, amigo imaginário. O corvo personifica o luto. Ele diz ao pai no primeiro encontro: “Eu só vou te deixar quando você não precisar mais de mim.” A linguagem do corvo é mítica e surreal, contrastando com a cadência da linguagem das crianças e a tristeza e a dor do pai. O desapego ao formato tradicional de narrativa, o lirismo da prosa, o uso dos espaços em branco para ressaltar a ausência avassaladora da mãe e a alternância dos pontos de vista foram escolhas acertadas por parte do autor. Os fãs de poesia vão gostar de saber que o título do romance foi inspirado em um poema de Emily Dickinson, e que o corvo é uma homenagem a “Crow”, livro que Ted Hughes escreveu após a morte de Sylvia Plath.

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Tatianne Dantas, psicóloga e mediadora do Leia Mulheres de Florianópolis | “Linha M”, de Patti Smith

Depois de ter me emocionado bastante com “Só Garotos”, livro em que Patti Smith fala sobre seu relacionamento com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, “Linha M” foi a oportunidade de conhecer mais Patti de forma solo. Nas 216 páginas que compõem esse peculiar livro de memórias percorremos as lembranças e lugares que a artista visitou de uma forma não linear, o que trouxe uma sensação muito grande de proximidade, como estar sentada em um café ouvindo sua voz. Sabemos um pouco mais sobre suas saudades e a melancolia que algumas ausências provocam, a proximidade extrema que sente com os livros que lê e filmes que assiste. Suas pequenas obsessões tão comuns mas que, de alguma forma, quando contadas por ela, tornam-se grandiosas. A força que Patti transmite em cada página do livro ao falar de sua fragilidade e envelhecimento me afetou profundamente e “Linha M” tornou-se aquele tipo de livro que tenho vontade de folhear constantemente. Inesgotável.

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Maria Clara Drummond, escritora | “Tribunal da Quinta-Feira”, de Michel Laud

Faz poucos dias que terminei a leitura do Tribunal da Quinta-Feira, do Michel Laub. Coloco este livro como um dos destaques do meu ano em parte pelo tema que muito me interessa.Tenho a impressão que nunca discutimos tanta semântica. Nas redes sociais, debatemos exaustivamente o uso de cada palavra, como golpe, esquerda, estupro, feminismo. Alguns termos foram alargados ao máximo enquanto outros são interpretados em toda sua literalidade. Por trás disso há um sentimento de moralismo muito forte. Eu poderia dizer que é um “moralismo semântico”. Michel Laub reflete sobre o uso de palavras que, fora de um contexto específico e todas suas nuances, ganham diferentes sentidos a serem usados nesse tribunal moralista. Ao mesmo tempo, a narrativa não abre mão da trama que ocorre em paralelo e se entrecruzando com essas reflexões, que do meio para o final do livro ganha contornos de suspense, erotismo e romance.

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Priscilla Campos, jornalista e mediadora do Leia Mulheres em Recife | “Simpatia pelo Demônio”, de Bernardo Carvalho

O romance de Bernardo Carvalho está na falsa consciência da “razão louca”, nas distorções de um processo de conhecimento proporcionadas por configurações externas de poder. Tanto o Rato quanto o chihuahua são sujeitos que simulam suas percepções menos por um ato de sobrevivência, mais pelo “domínio-fantasma” do espaço psíquico-social ao qual pertencem. Não me parece um acaso que Berlim esteja entre eles, pois, como define o narrador, trata-se de “uma cidade de onde o risco fora banido pela irrealidade de uma situação histórica excepcional.” Na cidade-frio-no-estômago encontra-se a possibilidade de uma razão que está louca, mas julga-se sensata. “Como Penteu, ela delira, e acha que está raciocinando”, escreve Rouanet no ensaio “Razão e Paixão”. Berlim, o Rato e o chihuahua deliram porque estão aptos a redefinir as surpresas injustificáveis de uma paixão; estão, sobretudo, em prontidão para desordenar processos cognitivos e morais, afinal, diante de toda a nossa imensa bagunça, sempre nos resta duas saídas: a) a vontade de fuga, b) a negação do princípio da realidade.

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Victor Heringer, escritor | “O Pai Morto”, de Donald Barthelme

No ano passado, a Rocco publicou “O Pai Morto”, um dos melhores romances de Donald Barthelme – e o meu preferido do autor, a cujos contos, aliás, volto constantemente. Barthelme é um ponto luminoso na ficção norte-americana do século 20. Incompreendido até hoje por críticos monocelhos, que veem somente um caminho para a literatura (o oposto da alegria formal barthelmiana), fincou raízes e calmamente se estabeleceu como um writer’s writer, um virtuose, influenciador de gerações. Festejei seu lançamento brasileiro como quem comemora a reparação de uma injustiça. Guardei a leitura da tradução do Daniel Pellizzari para depois, sempre para depois, como uma iguaria, que só experimentei este ano. Valeu a pena.

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Nara Vidal, escritora e tradutora | “Morreste-me”, de José Luís Peixoto

Um livro de 2000 que eu comprei em 2015 e só consegui ler há dois meses. Quando ouvi José Luís Peixoto ler um poema dedicado ao seu pai na Flipoços, em 2015, eu sabia que a leitura de Morreste-me me tocaria em profundezas indizíveis. Comecei a ler o livro imediatamente, mas foi impossível continuar. O teor pessoal do livro que fala da morte do pai do autor, do luto, da perda e da ausência, logo se transferiu para a minha leitura de interpretação tão pessoal e de identificação imediata pela morte da minha mãe. O título dá conta de expressar completamente a beleza do conteúdo. Feito eu, o autor voltou à terra natal e ao redor, as casas, os chão, o sol “tudo como se continuasse”, apesar do fim do pai. Como se fosse possível que o tempo passasse, os anos se desdobrassem sem nem se incomodarem com o que nos assalta e nos imobiliza: nossas mortes pessoais. Um livro curtíssimo (61 páginas), mas muito profundo, comovente, intenso. Outro dia, minha filha ouvia, maravilhada “O Bêbado e o equilibrista”, a música favorita da minha mãe. Eu, de longe, observava a crueldade da conexão entre lá e agora, enquanto a música tocasse pra minha filha e “tudo como se continuasse.”