cabelo, a saga

por Cantão

Papo de 13 anos que já vivia com o mesmo cabelo. Ou mais. É tanto tempo que perco a conta. Nasci com juba, minha bisavó negra, minha avó morena, meu pai, idem. Infelizmente, vim branquela (não há maquiagem que seja melhor que o sol, perdão dermatologistas, me prefiro queimadinha), foi meu irmão do meio que pegou a cor boa da família, mas o cabelo veio com tudo: cheio, cheio, cheio.

E tudo bem, inventei cortes, minha mãe dava um jeito pra tampar as orelhas de abano (que operei com 7 anos), inventei coques (esse coque que 9 entre 10 pessoas usam hoje em dia, eu já usava todo dia em 2003, pena que meu fotolog foi apagado para que vocês pudessem me ver!). E os comentários eram: “que cabelinho de vovó!”. Enfim, cabelo sempre foi um assunto.

Com 16 anos, já com mercúrio e vênus em aquário em ebulição, fui num salão onde era a única branca e pedi tranças, daquelas que dava pra viver (as grudadas na cabeça doem muito, fiz anos depois). Tranças que uma hora virariam dreads.

A mulher topou, fiquei 4 horas sentada na cadeira, vendo minha cara se transformar. Andei pelas ruas da Tijuca, um pouco Milli Vanilli, um pouco ridicularizada pelo mesmo homem que quando me via de calças largas, falava “põe um jeans justinho, gata”, e eu cuspia no chão, bem perto dele. Passei uns bons meses com as tranças, que foram virando outra coisa, que foram ficando feias, estranhas… eu ainda lavava, claro, pra cabeça não feder, mas não era a mesma coisa.

Uma hora minha mãe me encheu o saco, eu acabei batendo continência, e tirei as tranças. Uns pedaços tive que cortar, meu cabelo virou um caos total depois disso. Quer dizer, no primeiro dia rolou um vanessadamatismo legal, um frisado sereia, mas que na segunda dormida já perdeu seu encanto.

Já contei aqui que sofri bullying no colégio, e agora além da magreza, do nariz grande, da altura, da bunda, do cheiro, de “colar velcro” (gritavam isso no corredor pra mim e pra Marina, e a gente nem sabia o que era e não tinha pra quem perguntar, hoje em dia morro de rir dessa história), meu cabelo também entrou na roda do terror. Não lembro o ano que era, mas a internet ainda não existia, pasmem.

Alguém comentou com alguém que comentou com a minha mãe que rolava uma técnica nova, chamada relaxamento de ondas. Minha mãe me guiou, eu andava meio de saco cheio de tudo, e apenas segui. O cheiro era fortíssimo, mas de fato o cabelo ficou com cara de mais tratado, mais baixo. Fui domada.

Passavam 4 meses, e lá ia eu fazer de novo e essa foi minha rotina durante mais de 13 anos, inacreditável. Virei atriz nesse meio de tempo. Mesmo relaxando o cabelo, ele sempre foi cheio, volumoso, então quando fui fazer meu cadastro na Rede Globo, não sabia que seria importante escovar o cabelo, e fui do jeito que eu era. Achei que bastava fazer relaxamento. Dei “boa tarde” e o moço disse “você vai fazer com esse cabelo?”. Ele queria escova, claro.

Fiz o vídeo pessimamente e tomei um certo nervoso de situações de teste. E foi num outro teste pra apresentar um programa para a internet, “Oi Pelo Mundo”, onde viajei um bocado (entrevistei o Kiko do Chaves, chorei baldes em Machu Picchu, joguei rugby em Córdoba, pulei do maior bungee jump da América Latina) que a produtora disse que eu deveria fazer escova progressiva, depois de eu ter passado no teste.

Eles pagaram, lembro que foi 400 reais, achei bem caro, era 2008, mas era um salão meio chique e tal. Realmente eu acordava e meu cabelo estava mais baixo, sempre “pronto” pra estar pronta. Mas eu achava esquisito demais, boi lambeu, meu rosto lambido por fios lisíssimos. Quando tudo passou, voltei a “apenas” relaxar.

Meu cabelo sempre teve força, história e poder, sei disso. Sei que quando fazia hidratação, escova, babyliss, o pacote todo, sei que quando soltava no show ou num date ou em qualquer situação, as pessoas comentavam, sorriam, perguntavam se o cabelo era meu. Eu dizia que era da África. Sempre foi.

Há uns anos, uma ideia não saía da minha cabeça: cortar curto. Zerar o cabelo e começar de novo. Parar com a química. Ver como está meu verdadeiro cabelo depois de tantos anos. Ainda uso muitos produtos industrializados, mas se a busca por uma vida mais saudável permeia minha rotina, por que não incluir o cabelo? Por que viver com essa química no meu corpo? Na minha cabeça?

Contei ao Rodrigo, que cuida do meu cabelo há 2 anos e meio. Ele ficou receoso e obviamente eu também estava. Sou muito alta e ainda sou um pouco magra; o medo em parecer um fósforo (risos) era real. Quando comentava com algumas pessoas, todos diziam “não faça isso” e um milhão de blá-blá-blás, que eu fingia que ouvia. Desculpa, amigos. Há coisas da ordem intuitiva e animal que são tão próprias, que amor algum poderia me deter nesse instante.

Minhã mãe, meu irmão Bernardo, minhas primas que fazem química (e não condeno, cada um tem sua história e sua busca), muitos falavam para que não fizesse isso. Mas encontrei a Vanessa, amiga da Ana Cláudia Lomelino (que também já teve todos os cabelos do mundo, e me encorajou muito, gracias). Vanessa tinha o maior cabelo que já vi na minha vida. Dançarina, disse que utilizava muito o cabelo nas apresentações e que quando raspou (mais radical ainda) fez um ato de passagem, um ritual. Ela disse coisas gloriosas e aquilo só me animou.

Cabelo é peso, é história, é resto de amor, é passado, é admiração, é vaidade, é muita loucura, e acima de tudo, é cabelo. E cabelo cresce. Cresce depois que a gente morre. Uma grande insanidade, uma grande separação louca. Queria muito uma transformação física, por conta de todas as transformações internas que venho sofrendo desde 2013, quando Plutão entrou em conjunção com o meu sol. Minha explosão interna, minhas pirações, minha saga espiritual, amorosa, minha busca, meus fracassos, meus sucessos, não estavam cabendo só dentro.

Parece besteira, e talvez seja um pouco — jamais pararei de ser besta — mas quis externalizar tudo isso. Tatuagens já tenho. Sapato verde, também. Estava na hora. O peso, a química, a mentira, não aguentava mais. “Fica escovando, Letícia”, me davam o toque. Mas odeio fazer escova, odeio as duas horas (tenho uma juba) sentada na cadeira, acho um saco, e comigo era ou tudo ou nada.

Não raspei, mas cortei muito curto. Tremi, temi, me achei jovem, me achei uma velhinha. Em momento algum, chorei ou me arrependi. Saí, fui à rua. Menos homens olharam, engraçado. Atenção: não estou reclamando, apenas relatando um fato. Como artista, já estava muito apegada a um artifício que sempre recorria até mesmo para esconder meu rosto em algum momentos.

Não suporto coisas automáticas, por isso tantas rupturas e imprevistos na minha vida. Sou disciplinada para algumas coisas, mas sou muito aberta ao espontâneo, e meu cabelo já não estava mais me dando essa sensação, já era puro embuste.
Agora mesmo me olhei no espelho, me achei feia por dois segundos, e logo depois redescobri meu rosto. Essa é a minha cara, esse é meu pescoço, esse é meu real cabelo, depois de 15 anos talvez, esse é meu real cabelo. Não estou apavorada, vão ter dias que sim, lógico. E quando ele era grande, idem, lógico.

Vou tentar parar de falar de astrologia nessa coluna, para não ficar tão limitada, mas como a bicha me acompanha em quase tudo, parece um passo ridículo e bobo cortar o cabelo e falar tanto sobre isso (!), mas há que se lembrar que a senhora aqui é terra-terra-terra. Mudanças bruscas assim me assustam num grau poderoso.

Foram anos de cabelo, de jurar que mandei bem numa cena ou numa hora do show por conta dele, de jurar que era Sansão, mas comigo não, violão. Eu sou maior que o meu cabelo, e a vaidade não vai me enroscar feito cobra e se eu quiser, eu tenho muita cara.
De nobreza, de vaca, de escrotuda, de homem. Muita cara. Aprendendo a ser apenas ela, sem moldura.