adeus, mundo [por fran bittencourt]

por Cantão

Entrei no primeiro táxi que apareceu. Expliquei que precisava chegar no Belas Artes em 15 minutos. O taxista riu. Contei para ele que meu dia tinha sido muito difícil porque mercúrio está retrógrado, a lua fora de curso e ver esse filme era minha única chance de ter esperança outra vez.

– É um filme francês, moço…
– Tá.
– Daquele festival famoso, o Varilux, sabe?
– Tátátátátá!

Ele prometeu que daria tempo, acho que mais para eu ficar quieta.
E quando estávamos em alta velocidade pelas ruas, percebi que tinha esquecido o óculos, e como não enxergo bem no escuro, olhava para ele e via um vulto meio dentuço e assustador.
Ele dizia coisas do tipo:

– Vai dar tudo certo, pode ficar calminha.

E ria. Não conhecia nenhuma rua que ele entrava. Mas eu não conheço rua mesmo, até ai beleza.

– Não é melhor colocar no Waze?
– Fica tranquila gata, sei bem esse caminho.
– Imagino que sim.

Que burrada fui fazer de não usar o aplicativo 99. Tava na cara que isso não ia acabar bem. Tarde demais. Peguei um frontal sublingual na bolsa, senti derreter na língua deliciosamente, provavelmente pela última vez. Ao menos, morrerei bem medicada.

Coloquei os fones. Tocava Bach. Me pareceu um aviso. A música tinha algo de “grand finale”.

Lágrimas. Tive uma vida muito boa.

Ele começou a falar com alguém no telefone.

– Consegui a encomenda. Chega ainda hoje.

Encomenda? Tava absolutamente claro que era eu. Suando frio, tirei os fones para ouvir, ao menos eu deveria saber para onde seria levada.
Comecei a rezar.

Ave Maria…

Esqueci a letra. Coloquei no Google “Ave Maria letra completa”. O 3G não funcionou, claro.

Me dei conta que faz muito tempo que não rezo.
Minha vó sempre dizia para rezar todo dia. Que saudade dela. Mas talvez a gente se encontre daqui a pouco.

Olha, é muita injustiça ir parar no fundo de um rio para sempre, no único dia que consigo sair cedo da agência.

Meu Deus, gosto tanto da vida.

Sei que eu reclamo de tudo o tempo todo, mas é da boca para fora (grito em pensamento). É da boca para fora! Não quero ser morta por um taxista dentuço e jogada no rio Tietê. Minha diretora de criação nunca vai acreditar que morri. Vai achar que estou inventando para não entregar os jobs de amanhã.

Logo hoje que coloquei meu vestido novo.
Meu cabelo curto ta tão legal, minha mãe ainda nem viu. Eu só queria ver um filme para relaxar. Inacreditável tudo acabar numa quarta-feira tão sem carisma.

Nem falei com a Duda.

Passei brigando por causa de um roteiro besta. Devia vir um aviso do céu em caso de último dia de vida. Não é justo viver de qualquer jeito os últimos instantes. Ave Maria cheia de graça senhor é convosco… 3G maldito.

Comprei um vidro enorme daquele shampoo milagroso, demorou tanto para chegar e nem vou conseguir usar. Vou mandar uma mensagem para minha irmã avisando para ela pegar. Custou caríssimo.

Estou prestes a ser esquartejada e jogada no rio mais imundo do universo e o fato de estar pensando no preço do shampoo só mostra o quanto estou apegada a esse mundo.

Minha alma nunca vai descansar em paz.
Vou viver no limbo.
Por que?
Por que ? Fui entrar nesse taxi?
Fecho os olhos.
Não quero mais ver nada.

Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome não lembro o resto mas me salva, me salva, me salva…

– Chegamos.
– Onde?
– No cinema.

Pago a corrida e ele me deixa em frente ao Belas Artes. Conforme o combinado.

Não é fácil viver dentro da minha cabeça, amigos.

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