analógico [por veronica fantoni]

por Cantão

Aconteceu de novo, ela disse. Não que aconteça sempre, mas quando acontece é sempre assim. Um medo de tudo, do que é, do que pode ser ou ainda do que poderia ter sido, se fosse. Medos funcionam como freios, ela sabe. Trata-se de uma paixão em alta resolução, ele previu. Flash aceso sobre os desejos: querer é apenas ser livre.
Nem mãos rápidas, nem equipamentos modernos, nem softwares poderosos de edição. Momento exato ou não. Foi o olhar dele sobre ela o que mudou o rumo certo de todas as coisas. Foi aquele par de olhos sérios a origem de tudo.

E naquele instante, nada, nada poderia dar errado. Ela tão cheia de cores, desde o primeiro encontro, um dia de verão fervendo em pleno inverno, ele pensou.
Ele de traços duros e braços fortes, sorria de lado tão seguro com uma câmera na mão e uma lata de cerveja na outra. Ele ia ficando mais bonito a medida que bebia, com jeito de quem sabe o que quer – era preciso estar sóbria pra perceber.
Ele apontou para ela a sua lente e piscou. O que me ilumina é a sua retina, ela disse.

Ajustou o foco, ela piscou de volta e procurou os olhos por trás dos olhos e a pessoa por trás do clac dos dedos ágeis. Eu ainda vou morar na sua câmera, ela brincou. Tomaram os dois o mesmo táxi pelas ruas vazias de Ipanema, que agora parece tão pequena, deixa a gente na esquina, cheiro de maresia, prédio sem elevador, mãos dadas nas escadas, amor sem recorte, parece que alguém bebeu demais, fazem barulho, corpos sem retoque, já é madrugada, mas tanto faz.

As roupas amanhecem jogadas sobre a cadeira do quarto, os pés pisam sem sapatos, ela anda descalça no chão frio do banheiro gelado enquanto ele dorme seu sono pesado. Ela ajeita o cabelo em frente ao espelho, o batom acordou borrado, o corpo cansado agradece por toda a saturação, brilho e contraste alcançados. Ela olha pra ele dormindo e queria guardá-lo em uma moldura. Antes de ir embora, sem beijo de despedida ou um ‘até mais’, ela se pergunta se vai voltar outro dia e encontrar no quartinho escuro, nos fundos daquele apartamento antigo, sua imagem em branco e preto pendurada no pequeno varal de sonhos bons.

Ele e seu olhar analógico. Ela e seu olhar digital. Dupla exposição. Ambos embriagados pela luz natural.

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